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# 35. 🩸Precisamos ter uma conversa séria sobre soroterapia
Olá pessoal,
O termo “soro da beleza” tem se popularizado no Brasil depois que influenciadores e famosos começaram a aplicar vitaminas, aminoácidos e outros nutrientes de forma intravenosa (IV), em busca de mais disposição e beleza.
Com um cardápio pronto, muitas clínicas estão vendendo a soroterapia como uma promessa de resultados, muitas vezes sem realizar exames prévios dos pacientes.
Eu acredito que muitos termos estão sendo aplicados de forma errada.
O que deixa as pessoas confusas sobre a indicação e benefício de uma terapia endovenosa para pacientes selecionados. Versus as promessas de melhora para problemas de saúde sem qualquer evidência para suportar.
Resolvi me aprofundar no tema para você conseguir separar o joio do trigo.
Tempo de leitura : 5 minutos
💬 Em pauta
Antes de falar no “soro da beleza”, vamos dar um passo atrás.
Existe benefício para o uso de medicamentos na veia? Sim, muitos.
Alguns pacientes precisam suplementar vitaminas a nível ambulatorial? Sim, mas são casos BEM selecionados.
A infusão de vitaminas e aminoácidos ajuda a ficar mais bonito, com mais energia ou cura a depressão? Não, não e não.
Certo, agora vou separar em 3 partes para te explicar.
Soroterapia hospitalar ou em ambiente de home care
Soroterapia ambulatorial
Marketing e gestão das clínicas
De fato, existem casos em que pacientes precisam fazer reposição de nutrientes e vitaminas em regime ambulatorial, mas estes são casos de exceção, como na reposição de ferro IV para pacientes com doenças crônicas, ou a reposição de vitaminas em pacientes com distúrbios da absorção intestinal.
E a mídia acaba colocando a soroterapia como um inimigo, mas ela é muito bem indicada para um grupo restrito de pacientes, que realmente precisam fazer infusões de medicamentos e nutrientes por meio do soro.
Então vamos esclarecer.
Soroterapia hospitalar
Ela é comprovada para a infusão de medicamentos em que a via oral mostra-se pouco efetiva ou é necessária um efeito mais rápido.
Exemplo: Antibiótico endovenoso, em um paciente com infecção, analgesia para ação rápida no pronto-socorro, sedação de um paciente para cirurgia. Alguns medicamentos tem um uso específico e apenas estão presentes na formulação endovenosa.
Além disso, existe um movimento forte no ambiente hospitalar para descalonar ("reduzir") a terapia na veia para a terapia oral assim que possível, evitando a necessidade de um acesso venoso, o que aumenta o risco de infecção hospitalar.
Soroterapia ambulatorial
Em uma rotina de consultório, a maioria dos medicamentos tem a via oral como principal forma de administração. O motivo é simples.
Por que agregar complexidade (acesso venoso) e risco (infecção, sangramento) em um caso que sem urgência e que a via oral atende ao fim proposto?
Além disso, acaba piorando a experiência do paciente, ao não poder tomar a sua medicação em casa.
Mas então por que tem clínicas oferecendo tratamentos por via intravenosa?
A terapia intravenosa (IV) de medicamentos não é algo novo.
Ela já é usada há muitos anos para pacientes com déficits nutricionais, que podem levar a sintomas como diarreia, perda de peso, inflamação da língua e anemia, entre outros.
Problemas de má absorção (dificuldades em absorver macronutrientes e micronutrientes dos alimentos) podem aparecer devido a danos aos intestinos (como danos causados por distúrbios gastrointestinais) ou por cirurgia (como a remoção de uma parte do intestino).
Exemplos de outras causas de déficits de nutrientes incluem queimaduras graves ou lesão renal aguda, que requer terapia de substituição renal.
A infusão na veia, para estes pacientes, é uma maneira de administrar altas concentrações de vitaminas e minerais diretamente na corrente sanguínea, permitindo a rápida absorção de doses mais altas dessas substâncias versus a ingestão de alimentos ou suplementos.
Até para estes pacientes com doenças sérias, a superioridade da terapia intravenosa tem sido questionada, versus oral ou nasoenteral.
Esta revisão recente do grupo BMJ sobre o assunto traz um resumo bem interessante.
O artigo "Intravenous vitamin injections: where is the evidence?" do Drug and Therapeutics Bulletin de outubro de 2023 discute a eficácia e segurança das injeções intravenosas de vitaminas, popularmente conhecidas como "soro da beleza” ou “soro do bem-estar” para aumentar a energia, reduzir o estresse e fortalecer a imunidade.
Ele enfatiza que a maioria das pessoas obtém as vitaminas necessárias através de uma dieta saudável e balanceada, e que suplementos orais são recomendados apenas para grupos específicos com risco de deficiência.
Existem várias condições médicas em que a administração de vitaminas por via intravenosa é necessária, como:
síndromes de má absorção grave
encefalopatia de Wernicke
ou pacientes críticos.
No entanto, ressalta a falta de evidências de alta qualidade que justifiquem o uso de infusões de vitaminas em altas doses para indivíduos saudáveis ou sem deficiências específicas.
Riscos potenciais desta terapia incluem:
reações alérgicas
hipotensão
flebite
embolia aérea
e sobrecarga de fluidos.
A conclusão do artigo é que as infusões intravenosas de vitaminas são uma opção cara e, muitas vezes, desnecessária, e que as reivindicações de benefícios para a saúde em sua promoção precisam ser mais rigorosamente avaliadas e baseadas em evidências de alta qualidade.
Como estas clínicas tem oferecido a terapia endovenosa?
Alguns profissionais e clínicas afirmam que a terapia IV de vitaminas pode melhorar o bem-estar até mesmo em pessoas que não têm deficiências de vitaminas (ou minerais).
Eles oferecem um coquetel com formulações de vitaminas, aminoácidos e outros nutrientes em altas doses. Algumas promessas que já vi rodando na web / instagram:
Impulsionar o sistema imunológico (embora o que isso significa ou como isso pode ser feito não esteja claro)
Aumentar os níveis de energia e reduzir a fadiga
Aliviar o estresse, ansiedade e depressão
Eliminar toxinas do corpo
Tornar a pele mais saudável
Tratar asma, alergias, sinusite crônica, hipertensão arterial, fibromialgia, diabetes, doenças cardíacas, espasmos musculares agudos e doença de Parkinson
Tratar enxaquecas e dores de cabeça tensionais
Isso não é verdade. Não existem evidências científicas. E ainda podem causar efeitos colaterais sérios.
Um caso emblemático, tratado pela Profa. Ludhmila Hajjar, foi o deputado estadual, Carlos Alexandre, que teve uma intoxicação por cromo após 5 sessões da terapia intravenosa “milagrosa”. Cuidado.
Precisamos orientar as pessoas sobre o risco destas “terapias milagrosas".
Para reforçar:
Não existem estudos mostrando o benefício de uma reposição intravenosa com altas doses de vitaminas para pacientes sem deficiência. Não faça.
Marketing e gestão das clínicas
Certo, mas por que estamos vendo uma popularização tão grande destes procedimentos.
O motivo é simples: Gestores de clínicas quiseram impactar dois indicadores para aumentar o faturamento:
Ticket médio: quanto um paciente gasta em uma visita à clínica
LTV (lifetime value): quanto um paciente gasta durante toda a sua jornada de acompanhamento na clínica, da primeira a última consulta
Eles se apoiaram no fato que o sistema de saúde (e por consequência os pacientes) remunera melhor a realização de procedimentos, independente do desfecho clínico.
Ou seja, ao criar um novo procedimento (infusão intravenosa) a clínica poderia potencialmente dobrar ou triplicar o ticket médio dos pacientes, além de criar um vínculo maior com eles, já que as infusões só podem ser realizadas em ambiente de saúde.
O que você acha disso?
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Aprendi neste podcast como funciona a cabeça de uma pessoa que manja MUITO de produtos digitais - Mihika Kapoor, VP de produto da Figma. Para quem quer conhecer mais, vale ouvir!
💭 Citação
Nós temos um desequilíbrio intenso entre oferta de profissionais capacitados para atuar em saúde mental e a crescente demanda de pacientes.
Será que aqui não temos uma oportunidade única para o uso de inteligência artificial na triagem e apoio destes pacientes?
Insight importante do Dr. Eric Topol no seu livro (clássico) - Deep Medicine.
Via Readwise
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Thiago Liguori